O blog

Aqui é um espaço construído de acordo com o meu desejo de contar, compartilhar e escrever.

Itinerário

Não quero viver como uma planta que engasga e não diz a sua flor. Como um pássaro que mantém os pés atados a um visgo imaginário. Como um texto que tece centenas de parágrafos sem dar o recado pretendido. Que eu saiba fazer os meus sonhos frutificarem a sua música. Que eu não me especialize em desculpas que me desviem dos meus prazeres. Que eu consiga derreter as grades de cera que me afastam da minha vontade. Que a cada manhã, ao acordar, eu desperte um pouco mais para o que verdadeiramente me interessa. Não quero olhar para trás, lá na frente, e descobrir quilômetros de terreno baldio que eu não soube cultivar. Calhamaços de páginas em branco à espera de uma história que se parecesse comigo. Não quero perceber que, embora desejasse grande, amei pequeno. Que deixei escapulir as oportunidades capazes de bordar mais alegrias na minha vida. Que me atolei na areia movediça do tédio. Que a quantidade de energia desperdiçada com tantas tolices poderia ter sido útil para levar luz a algumas sombras, a começar pelas minhas. Que eu saiba as minhas asas, ainda que com medo. Que, ainda que com medo, eu avance. Que eu não me encabule jamais por sentir ternura. Que eu me enamore com a pureza das almas que vivem cada encontro com os tons mais contentes da sua caixa de lápis de cor. Que o Deus que brinca em mim convide para brincar o Deus que mora nas pessoas. Que eu tenha delicadeza para acolher aqueles que entrarem na roda e sabedoria para abençoar aqueles que dela se retirarem. Que, durante a viagem, eu possa saborear paisagens já contempladas com olhos admirados de quem se encanta pela primeira vez. Que, diante de cada beleza, o meu olhar inaugure detalhes, ângulos, leituras, que passaram despercebidos no olhar anterior. Que eu me conceda a bênção de ter olhos que não se fechem ao espetáculo precioso da natureza, há milênios em cartaz, com ou sem platéia. Quero aprender a ser cada vez mais maleável comigo e com os outros. Desapertar a rigidez. Rir mais vezes a partir do coração. Quero ter cuidado para não soltar a minha mão da mão da generosidade, durante o percurso. E, quando soltá-la, pelas distrações causadas pelo egoísmo, quero ter a atenção para sincronizar o meu passo com o dela de novo. Quero ser respeitosa com as limitações alheias e me recordar mais vezes o quanto é trabalhoso amadurecer. Quero aprender a converter toda a energia disponível às mudanças que me são necessárias, em vez de empregá-la no julgamento das outras pessoas. Que as dificuldades que eu experimentar ao longo da jornada não me roubem a capacidade de encanto. A coragem para me aproximar, um pouquinho mais a cada dia, da realização de cada sonho que me move. A idéia de que a minha vida possa somar no mundo, de alguma forma. A intenção de não morrer como uma planta que engasgou e não disse a sua flor.

Pétalas

Dentro do porquinho cor-de-rosa não tinha nenhuma moeda. Só as palavras mais preciosas que ela guardava com cuidado, enroladas em tirinhas de papel.

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O meu 2010
segunda-feira, 27 de dezembro de 2010 07:12 0 Comentários
“Garotas felizes são as mais bonitas”, disse Audrey Hepburn. Pode até ser, mas a felicidade constante anestesia. Em 2010, descobri que a minha beleza vem de outros jeitos. Não quero o suprassumo da felicidade. Quero uma vida interessante. Quero uma vida cheia de descobertas. Quero uma vida repleta de realizações. Quem disse que é fácil? Não é. Mas facilidade nunca foi meu sobrenome.
Sensibilidade
domingo, 26 de dezembro de 2010 16:05 0 Comentários
Ser sensível nesse mundo requer muita coragem. Muita. Todo dia. Esse jeito de ouvir além dos olhos, de ver além dos ouvidos, de sentir a textura do sentimento alheio tão clara no próprio coração e tantas vezes até doer ou sorrir junto com toda sinceridade. Essa sensação, de vez em quando, de ser estrangeiro e não saber falar o idioma local, de ser meio ET, uma espécie de sobrevivente de uma civilização extinta. Essa intensidade toda em tempo de ternura minguada. Esse amor tão vívido em terra em que a maioria parece se assustar mais com o afeto do que com a indelicadeza. Esse cuidado espontâneo com os outros. Essa vontade tão pura de que ninguém sofra por nada. Esse melindre de ferir por saber, com nitidez, como dói se sentir ferido.

Ser sensível nesse mundo requer muita coragem. Muita. Todo dia. Essa saudade, que às vezes faz a alma marejar, de um lugar que não se sabe onde é, mas que existe, é claro que existe. Essa possibilidade de se experimentar a dor, quando a dor chega, com a mesma verdade com que se experimenta a alegria. Essa incapacidade de não se admirar com o encanto grandioso que também mora na sutileza. Essa vontade de espalhar buquês de sorrisos por aí, porque os sensíveis, por mais que chorem de vez em quando, não deixam adormecer a ideia de um mundo que possa acordar sorrindo. Pra toda gente. Pra todo ser. Pra toda vida.

Eu até já tentei ser diferente, por medo de doer, mas não tem jeito: só consigo ser igual a mim.
Mudando de assunto
segunda-feira, 20 de dezembro de 2010 05:41 0 Comentários
Tem alguma coisa melhor do que realizar um sonho sonhado durante muito tempo?

Cada um fala por si, claro; em criança eu sonhava com Paris, e nunca pensei que fosse lá algum dia. Mas sonhei tanto, que um dia fui, e minha emoção e minhas recordações estão dentro de mim até hoje, intactas. Eu conhecia Paris antes de conhecê-la, e cada rua, cada museu, cada café me remeteu aos sonhos que povoaram minha adolescência. [...]

O triste é que essas crianças que crescem conhecendo o mundo todo perdem a capacidade de desejar, de sonhar. Estou cansada de ver uma garotada sem vontade de nada, pois já tiveram tudo, desde cedo; entendem de sushi, conhecem as grifes, possuem todos os iPads e iPods do mundo e não conseguem se deslumbrar com mais nada.

Perguntei a um deles outro dia em que pretendia trabalhar (isso já aos 25!) e ouvi como resposta que ainda não sabia, mas que o importante era ser feliz. Mas como assim, ser feliz?

Não havia um objetivo mais concreto, uma curiosidade louca de conhecer alguma coisa, de ir a algum lugar, de sonhar, fosse com o que fosse? Não, ele só queria ser feliz.

É bem legal querer ser feliz, mas é pouco.

Danuza Leão, em Mudando de assunto. Folha de S.Paulo, Cotidiano, 19 dez. 2010. Para ler o texto completo, apenas para assinantes UOL, aqui.
Dos sinais
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010 11:49 0 Comentários
A tristeza transforma os dias. Todos eles são nublados. Nem o sol, que descortina a janela do quarto, parece clarear o caminho. Sem lamentar o passado, sem temer o futuro, um dia após o outro sempre igual. Até o momento em que os anjos da guarda resolvem lhe contar: Sabe o que você tanto quer? Reconhece a beleza do seu grande sonho? Todas as imagens responderam. Ela chorou sozinha, porque era um sim.
A primeira separação
sábado, 4 de dezembro de 2010 15:49 0 Comentários
A cena ainda brilha na minha memória. Eu tinha quatro ou cinco anos e queria um bichinho de estimação de qualquer maneira. Peguei na minha rua um gatinho recém-nascido, o enrolei na minha blusa e nos escondemos debaixo da escada, na sala da minha avó. Agachei e ficamos lá, juntos. Minha mãe, minha tia e minha avó estavam atrás de mim para devolvê-lo. Nós dois, quietinhos.

Enfim, fomos encontrados. A minha mãe, com sua psicologia peculiar, me perguntou: “Você gostaria de ser separada da sua mãe?”. Eu o devolvi, com o coração partido.

Talvez tenha sido essa a minha primeira grande dor consciente de separação.
Força
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010 05:20 0 Comentários
O que revela a nossa força não é sermos imbatíveis, incansáveis, invulneráveis. É a coragem de avançar, ainda que com medo. É a vontade de viver, mesmo que já tenhamos morrido um pouco ou muito, aqui e ali, pelo caminho. É a intenção de não desistirmos de nós mesmos, por maior que às vezes seja a tentação. São os gestos de gentileza e ternura que somente os fortes conseguem ter.
Dos caminhos
Um ponto. Às vezes é isso o que acontece, vemos apenas um caminho, um objetivo, o fim do arco-íris. Parece que a felicidade só reside em um lugar. Até o dia em que o plural aparece. Os caminhos. A perda da referência nos traz insegurança, mas a possibilidade de escolher o que quiser é libertador. Recomeçar é uma tarefa difícil. É o que me resta. O medo? Basta colocar no porta-malas e seguir adiante.
Gritos e sussurros
terça-feira, 30 de novembro de 2010 07:45 0 Comentários
Pensar, o tempo inteiro, o que seria viver de acordo com o próprio coração. Seguir aquela voz forte, gritando no peito, a todo instante. Não adianta tapar os ouvidos, olhar para o lado, ligar a televisão, ouvir música no último volume, prestar atenção na buzina dos carros, no choro do bebê da vizinha, na conversa da família na sala. Não. Nada adianta. Sequer adiantaria tentar. E a voz lá, gritando, gritando, gritando, querendo ensurdecer. Tentar fugir. Não quero ouvir. Não quero saber. Para que ouvir? Para que saber? Não é o meu coração o meu guia. Quem falou isso? O grande guia é outro. Aquela caixa preta, acima do pescoço. Nossa grande caixa de pandora. Não adianta abrir, a chave é com segredo. É secreto. Não nos foi dado o código para abri-la. Mas é ela, sim, é ela quem nos guia. Ela, o todo tempo. E por que ouvir a voz? Por quê? Para! Para de me dizer a todo instante a mesma coisa. Para! Cansei disso! Cansei de ouvir esta voz gritando, gritando, gritando. No começo era sussurro. Depois veio o tom de conversa. E eu, fingindo não ouvir. E começaram os gritos. Agora os gritos são tão altos que doem. Ai, como doem. Doem a todo instante. Não durmo, pelo som e pela dor. Depois disto, o que virá? Alguém sabe? Alguém saberá me dizer, o que mais virá me atormentar? Hein? E alguém aí, alguém quer saber o que os gritos dizem? Querem saber o que meu coração quer me contar? Saber o que eu sempre soube, mas nem eu mesma tive coragem de me contar? Paixão. Viver com paixão. Viver com a nossa paixão. Aquela paixão viva. Não, não é essa que você está pensando. Nem você está vivendo de acordo com a sua, porque pensou que eu estivesse falando de uma outra pessoa. Não. Estou falando de outra paixão. A sua. A minha. Aquela que nos faz viver. Paixão por um sonho. Nosso sonho de vida. Coloquei o meu debaixo da cama. Na gaveta do peito. Agora, ele não me deixa mais dormir.
Das divagações
sábado, 27 de novembro de 2010 02:24 0 Comentários
Nas últimas semanas, li duas listas intrigantes. Ambas desenvolviam como ser um tipo de mulher: ideal, interessante, perfeita. Enfim, um desses adjetivos.

Talvez seja uma resposta dos homens ao ideal de príncipe encantado. Talvez. O que não compreendo, mas entendo, é a nossa necessidade feminina de adequação. Temos de nos moldar para sermos as mulheres que os homens desejam ter.

Moldar o corpo, o comportamento, as palavras, as ações, a própria vida. “Eu não faço isso”, uma mulher dirá. “Eu não tenho esse ideal”, um homem completará. Não falo de exceções. Falo de um conceito.

Infeliz, angustiado, mentindo para si mesmo, nada disso é um fracasso. Somos todos fracassados, homens e mulheres, se estamos sozinhos. “Ninguém te quis, está vendo?”

Feito produtos na prateleira, parece que alguém nos aponta o dedo e diz: “É você”. Seja pela embalagem, pelo valor agregado, pelo status, pelo sabor, pelo preço. “Eu quero e vou levar.” E a tristeza de sobrar? Em um engenhoso trabalho de marketing, nos transformamos naquilo que o outro quer. E esquecemos quem somos.

Relacionamentos são encontros. Seja para sempre ou por um tempo. Ninguém escolhe ou é escolhido. As pessoas se encontram quando seus rumos coincidem. As pessoas ficam juntas por quereres semelhantes. As pessoas se amam por evento de graça. Ninguém é preterido por ninguém.

O que não aceitamos é que estamos sozinhos porque queremos. Estamos acompanhados porque queremos. Isso sim é uma escolha. E quando nos abrimos para a nossa escolha, seja ela qual for, agimos para que as coisas aconteçam. E acontecem. A grande questão é: O que eu quero?

Há quem jamais descubra. Afinal, ser responsável pela própria vida é trabalhoso demais.
Fingir que não quer
quinta-feira, 25 de novembro de 2010 08:27 0 Comentários
Ela nunca namorou. Namorar para valer, namorinho de portão, ela nunca teve. Nunca quis. Achava que um dia se cansaria, teria de olhar para o rapaz e dizer “Não te quero mais” ou teria de ouvir “Não quero mais você”. Também nunca passeou por vários rapazes para saber como era. E os pouquíssimos relacionamentos não tiveram a palavra “namoro” na acepção clara do verbete. Passou muito tempo sozinha, assistindo à vida afetiva passar pela janela, enquanto o amor crescia no coração. Seu amigo diz que ela não nasceu para namorar, nasceu para casar. Tem razão, ela prefere dormir e acordar junto em vez do “Amanhã a gente se encontra, tudo bem?”. Tudo bem. Mas por que as lágrimas ao ler Minha namorada? Leu pela primeira vez aos 15 anos, lembra nitidamente, e chorou. Quase 15 anos depois, chorou novamente ao reler. Agora sim ela entende: sempre quis ser a namorada. Ter quem contasse os dias para encontrá-la. Dizer ‘eu te amo’ sem qualquer pretensão a não ser essa, dizer que ama. Beijar sem o receio de não ser correspondida. Falar ‘saudade’ sempre que realmente sentisse. Suspiro profundo. Ela nunca pensou que sentiria tanta falta de algo que fingiu não querer.

*
O texto completo do poema Minha namorada, aqui.
Quando chega o momento de crescer
terça-feira, 23 de novembro de 2010 04:56 0 Comentários
Todos queremos crescer. Somos desesperados para chegar lá. Agarrar todas as oportunidades que pudermos para viver. Nos ocupamos tanto tentando sair do ninho que não pensamos no fato que será frio lá fora. Frio pra caramba. Porque crescer significa deixar as pessoas para trás. E no momento em que estamos firmes, estamos sozinhos.
Grey’s Anatomy, sétima temporada, episódio 5.
Felicidade e alegria
sábado, 20 de novembro de 2010 02:10 0 Comentários
Em suma, a felicidade é uma quimera que seria sempre própria de uma outra época da vida – que ainda não chegou ou que já passou.

[...] para aproveitar a vida, o que importa é a alegria, muito mais do que a felicidade. Então, o que é a alegria?

Ser alegre não significa necessariamente ser brincalhão. Nada contra ter a piada pronta, mas a alegria é muito mais do que isso: ser alegre é gostar de viver mesmo quando as coisas não dão certo ou quando a vida nos castiga. É possível, aliás, ser alegre até na tristeza ou no luto, da mesma forma que, uma vez que somos obrigados a sentar à mesa diante de pratos que não são nossos preferidos ou dos quais não gostamos, é melhor saboreá-los do que tragá-los com pressa e sem mastigar. Melhor, digo, porque a riqueza da experiência compensa seu caráter eventualmente penoso.

Essa alegria, de longe preferível à felicidade, é reconhecível sobretudo no exercício da memória, quando olhamos para trás e narramos nossa vida para quem quiser ouvir ou para nós mesmos. Alguém perguntará: é reconhecível como?

Pois é, para quem consegue ser alegre, a lembrança do passado sempre tem um encanto que justifica a vida. [...]

Ora, nossa alegria encanta o mundo, justamente, porque ela enxerga e nos permite sentir o que há de extraordinário na vida de cada dia, como ela é.

Contardo Calligaris, em Felicidade e alegria.
A vida é um demorado adeus
segunda-feira, 15 de novembro de 2010 08:17 0 Comentários
Por conta da peça Viver sem tempos mortos, Fernanda Montenegro concedeu uma belíssima entrevista à Revista Bravo! em maio de 2009. Eu fiquei especialmente emocionada em dois momentos:


Sua mãe trabalhava fora?
Não. Era uma ótima dona de casa, uma administradora emérita do lar. Cuidava com carinho e eficiência de meu pai, um modelador mecânico, e das três filhas. Quando ficou viúva, caiu em depressão. Tinha mais de 80 anos e procurou uma psicanalista. Expôs as angústias à terapeuta e depois a ouviu, ouviu, ouviu. De repente, interrompeu a conversa e revelou: “Doutora, sabe do que gostaria mesmo? De liberdade”. Veja bem: minha mãe precisou chegar à extrema velhice para conseguir expressar o que de fato almejava. Escutei testemunhos similares — e tardios — de outras mulheres idosas, como a minha sogra. Elas integravam uma geração que suportava a dor em silêncio, sem reclamações. “Caráter e espinha”, proclamava minha mãe quando lhe indagavam quais os principais atributos femininos. Espinha para se curvar, compreende?

[...]

Fernando concordava com as ideias defendidas por Simone em O Segundo Sexo?
Sim, totalmente. Era um homem de tutano, de fibra, um homem libertário que recusava o machismo. Enfrentou meu sucesso e minha personalidade forte à maneira de um gigante. Em nenhum momento me castrou. Pelo contrário: me incentivou muito e, na função de produtor, buscou criar as melhores condições para meu progresso como atriz. Certas vezes, me vendo no palco, chorava de emoção. Se minhas conquistas o incomodavam, não deixou transparecer — atitude que considero de uma grandeza absoluta. [...]


Ainda há mulheres que não sabem o significado de liberdade. Ainda há homens que não sabem conviver com uma mulher que sabe. Chorei ao ler sobre o marido de Fernanda Montenegro. Porque é um marido assim que espero ter ao meu lado.


Para ler a entrevista completa, que vale cada parágrafo, clique aqui.
Com honestidade
sábado, 13 de novembro de 2010 12:44 0 Comentários
De vez em quando, a água, por natureza cristalina, de lindas praias existentes na região dos afetos fica turva por detritos emocionais acumulados, nossos e alheios. Às vezes, é possível percebê-los e até identificá-los na superfície. Outras, não. Só o que dá pra perceber é a transparência prejudicada. O desconforto que nem mesmo a massagem das ondas consegue desmanchar. A espontaneidade que desaprendeu a fluir. Um aperto meio doído na garganta dos instantes compartilhados.

Os tais detritos, entre outras coisas, podem ser resíduos de achismos traiçoeiros, olhares estreitados, tristezas arqueológicas, cacos de carências, bobagens fermentadas, perdões mal costurados, medos cabíveis e outros que não cabem. Podem ser também resíduos de coisas inimagináveis, criadas durante trechos de silêncio ruidoso pela falta daquele raro diálogo que não se restringe ao andar da cabeça. Aquele que tem espaço para começar no coração. Aquele que é lugar onde ninguém precisa se defender de ninguém para oferecer proteção a si mesmo. Aquele que quando não acontece às vezes se transforma em dois monólogos esquisitíssimos, feitos de equívocos e sentimentos embolados pelas mãos da confusão.

A verdade é que, embora quiséssemos, não encontramos uns com os outros ao longo da extensa orla da existência só para compartilhar banhos aprazíveis em mar de águas claras, clima ameno, riso farto, coco gelado ou uma cerveja boa. A ideia é ótima, e deve ser desfrutada tanto quanto seja possível, mas não é só essa. Os encontros, sobretudo aqueles que acontecem com potencial pra trazer à tona os seres amorosos que, por essência, já somos, evidenciam nossas belezas sem reservas, mas podem também turvar as águas de quando em quando. Uma hora costuma acontecer, coisas nossas, coisas alheias. Geralmente, chamamos isso de problema, mas um nome também adequado é oportunidade.

Quando acontece, a gente às vezes fica tão assustado que tenta se convencer por a mais b que os detritos são só do outro e as belezas são só nossas. Outras vezes, pode se afastar correndo da beira da praia e deixar o outro se virar sozinho com os resíduos todos, os dele e os nossos. Outras também, inábeis, estabanados, como costumam ser as pessoas que estão começando a aprender a amar, podemos só conseguir revolver os detritos e espalhá-los ainda mais, no afã de resgatar de qualquer jeito a transparência comprometida.

Talvez nesses momentos o gesto mais promissor e generoso possível seja, com toda a calma que soubermos, começar a sair do monólogo esquisito para dialogar a partir do coração. Talvez seja arriscar descobrirmos juntos o que está turvando a água antes que ela se torne mais poluída. E, se o sentimento compartilhado realmente for bacana e precioso para as duas vidas, quem sabe pedir uma para a outra com honestidade: “não desiste de mim.”
Das cismas
terça-feira, 9 de novembro de 2010 13:54 0 Comentários
A cisma é uma ideia fixa que fica teimando em se provar. Muitas vezes, ela não é nada, só acha que é. Isso acontece com a cisma que é prima do pressentimento, mas gosta de se apresentar como filha da certeza. Ela também costuma ser amiga íntima da desconfiança. Quem leva esse tipo de cisma a sério acaba implicando com coisas e com pessoas sem motivo nenhum. O problema é que, de vez em quando, o motivo aparece e a cisma se confirma. Aí, ninguém segura. Cheia de razão, a danada pode resolver dar palpite o tempo todo, por puro capricho, e acaba embaçando a percepção da gente. Quem cisma demais sempre empaca, embirra e antipatiza com o que nem conhece. Mas existe um outro tipo de cisma. Essa até pode ser alguma coisa, apesar de ela mesma nem sempre botar muita fé nisso. Também inventa ideias e impressões pra ficar cismando, insistente. Tem que prestar atenção, porque, aqui, é tudo diferente – essa cisma é prima do desejo, filha do sonho e pode virar a melhor amiga da perseverança quando a gente decide encarar o tira-teima.
Onde
sábado, 6 de novembro de 2010 08:58 0 Comentários
No andar silencioso do gato, na flor que aparece na rachadura da calçada, num travesseiro macio e cheiroso, na primeira fatia do pudim de leite, sentindo a brisa do mar à tardinha, no ritmo do poema, no salto da bailarina, no sorriso grátis no elevador. A delicadeza tem muitos jeitos de se revelar.
O tesouro
segunda-feira, 1 de novembro de 2010 10:18 0 Comentários
Dentro do porquinho cor-de-rosa não tinha nenhuma moeda. Só as palavras mais preciosas que ela guardava com cuidado, enroladas em tirinhas de papel.
A nossa caixa de lápis de cor
terça-feira, 26 de outubro de 2010 09:28 0 Comentários
Tenho uma amiga que quando percebe que eu estou triste costuma me perguntar quem roubou a minha caixa de lápis de cor. Tem vez que nem pergunta, apenas comenta: "poxa, dessa vez levaram as cores que você mais gosta!" A tristeza afrouxa um pouco, por mais que eu esteja chateada. Primeiro, porque é muito bom a gente se sentir olhado com carinho. Depois, porque essa expressão tem uma inocência capaz de fazer gente grande tocar em coisas sérias sem ficar com medo de queimar a mão.
Aceitação
Algumas vezes, tolamente, fazemos perguntas desnecessárias, que servem apenas para ferir um pouco mais o tecido já esgarçado das relações. Desnecessárias, porque inúteis. Desnecessárias, porque incapazes de dissolver nuvens, acender lumes, criar laços, desatar nós. Desnecessárias, porque aumentam abismos e não inventam pontes. Desnecessárias, porque, terra estéril, nenhuma beleza consegue florescer a partir delas. Desnecessárias, porque conhecemos as respostas com uma clareza desconcertante. Tanto, que preferimos não contá-las para nós mesmos por absoluta covardia. Então, perguntamos, desnecessariamente, quem sabe com a esperança de ouvir respostas diferentes das óbvias.

Desnecessárias são perguntas e respostas quando a realidade não precisa de palavras para dizer o que é. Muitas vezes o que, de verdade, nos falta é a coragem da aceitação. A coragem para admitir que tudo o que foi trocado cumpriu o seu destino da melhor maneira que conseguiu, no tempo que conseguiu, e foi. A coragem para abençoar e simplesmente seguir, coração sem névoa de pergunta, sem névoa de resposta, apenas grato pelo que deu pra ser. Dor maior que o desapego é viver de mentirinha o que já morreu.
Veronica Mars
domingo, 24 de outubro de 2010 05:34 0 Comentários
A tragédia entra na sua vida como um furacão, criando o caos. Você espera a poeira baixar e então escolhe. Você pode viver nos entulhos e fingir que ainda é a mansão que você se lembra, ou você pode rastejar na bagunça e lentamente reconstruir. Porque depois do desastre, o importante é seguir em frente. Mas se você for igual a mim, continuará perseguindo a tempestade.
Veronica Mars, episódio 3, primeira temporada.
Esse mistério
terça-feira, 19 de outubro de 2010 07:59 0 Comentários
Estive pensando nesse mistério que faz com que a vida da gente se encante tanto por outra vida. E sinta vontade de escrever poemas. Garimpar estrelas. Deixar florir pelo corpo os sorrisos que nascem no coração. Nesse mistério que nos faz olhar a mesma imagem inúmeras vezes, sem cansaço, seja ela feita de papel ou de memória. Que nos faz respirar feliz que nem folha orvalhada. Querer caber, com frequência, no mesmo metro quadrado onde a tal vida está. Cantarolar pela rua aquela canção que a gente não tinha a mínima ideia de que lembrava.

Estive pensando nesse mistério que faz com que a vida da gente encontre essa vida na multidão planetária de bilhões de outras. E sem saber que ela existia, perceba ao encontrá-la que sentia saudade dela antes de conhecê-la. Estive pensando nesse mistério que faz com que aquela vida que acaba de encontrar a nossa nos deixe com a impressão de estar no nosso caminho desde sempre, como se fosse um sol que esteve o tempo todo ali e a gente somente não o ouvia cantar. Nesse mistério que nos faz trocar buquês dos olhares mais cuidadosos. Que nos faz querer cultivar jardins, lado a lado. Nesse mistério que faz com que a nossa vida queira um bem tão grande à outra vida, que vai ver que isso já é uma prece e a gente nem desconfia.

Estive pensando nesse mistério lindo que você é para alguém e alguém é para você ou que ainda serão um para o outro. Nessa oportunidade preciosa dos encontros que nos fazem crescer no amor com o tempero bom da ludicidade. Nesse clima de passeio noturno em pracinha de cidade pequena. Nessa paz que convida o coração pra recostar e repousar cansaços. Nesse lume capaz de clarear um quarteirão inteirinho da alma. Nesse abraço com braços que começam dentro da gente. Nessa vontade de deixar o mundo todo pra depois só para saborear cada milímetro do momento embrulhado pra presente.

Estive pensando nesse mistério que não consigo desvendar. Nem tento.
Renúncia
segunda-feira, 18 de outubro de 2010 07:11 0 Comentários
Era tudo tão difícil, tão difícil, que, exausta, eu desisti.

Isso não quer dizer que eu deixei de amar. Isso quer dizer que eu desisti de sofrer. E, quem sabe, também, de causar sofrimento.
Dos mistérios
sexta-feira, 15 de outubro de 2010 12:10 0 Comentários
Pressentimento é um perfume que a gente sente, mas não sabe de onde vem. Como se o cheiro de alguma coisa que ainda está cozinhando entrasse pela janela de repente, abrindo o apetite fora de hora. Às vezes, é uma espécie de lampejo – igual à luz de um farol que aparece do nada, no meio da neblina: um não-sei-o-quê que pisca e logo some, deixando uma impressão com cara de certeza. De um jeito ou de outro, pressentimento é sempre embaçado, como um sonho que continua se sonhando depois de acordar. E tem esse mistério de se fazer entender, mesmo sem se explicar.
Cartas de amor
domingo, 10 de outubro de 2010 06:28 0 Comentários
Esta é uma época em que se fala muito. Quase todos falam o tempo todo. É difícil encontrar alguém para entabular uma conversa de silêncios. Muitas vezes as pessoas falam e falam, mas não é um diálogo. Não há uma troca, um dizer para o outro, para depois escutar o que o outro tem a dizer. Ao contrário, parece uma fala sem endereço. Mais um ato desesperado de manter-se falando para ter certeza de que existe. Acho que falamos tanto, nisto que a psicanálise chama de “fala vazia”, por falta de olhar que nos reconheça na singularidade do que somos. Algo como: já que ninguém diz que sou importante, então fico repetindo ao infinito que sou importante, para todos e para ninguém. Quando mais duvido, mais preciso falar.

Eliane Brum, trecho do texto Cartas de amor.
Vida simples
sexta-feira, 8 de outubro de 2010 07:53 0 Comentários
[...] Se aparece um problema, não quero ter razão. Em vez de reclamar, vou lá e resolvo. Quero ser feliz. Pessoas horríveis e situações desagradáveis fazem parte do nosso caminho. Então que elas sejam passageiras. Juro que farei um esforço para evitar que meu sangue italiano esquente. E que a parte lusitana da minha pessoa não me obrigue a ser brigona por pouco. Se precisar brigar, que seja por coisas boas e não por bobagens de outros. Já reparou como as pessoas adoram despejar suas frustrações no alheio? Não serei mais ímã de maluco. Nem deixarei que a ganância do outro atrapalhe meus desejos de simplificar a vida. Alguém me acompanha?
Chris Campos, em Vida Simples.
Desconhece-te a ti mesmo!
quinta-feira, 7 de outubro de 2010 16:33 0 Comentários
[...] Nada impede que amanhã eu descubra que ter um emprego e um formato de vida mais estável é o melhor para mim – ou que não, eu continue achando mais divertido viver com mais autonomia e menos dinheiro. Ou que invente um jeito novo que serve para mim, mas pode não servir para mais ninguém. O contrato que assinei comigo mesma é o de seguir coerente com a necessidade de me buscar.

[...] Meu conselho é fugir de frases do gênero: “Eu sou um tipo de pessoa que…” ou “Deixa eu te contar que tipo de pessoa eu sou…”. Suspeito que quem diz essas coisas não sabe nem o caminho de casa. Acho que as buscas mais interessantes começam com frases como: “Não sei mais quem eu sou” ou “Não tenho ideia de quem eu sou”. Ótimo, podemos dizer que começamos a nos conhecer. Claro que só para nos perdermos logo adiante. Afinal, para que mais serve a vida?

Eliane Brum, em Desconhece-te a ti mesmo!
A boneca inflável de cada um
segunda-feira, 4 de outubro de 2010 15:58 0 Comentários
É triste viver num mundo onde diante de qualquer diferença, mesmo que de opinião, seja preciso cair matando. Que gente tão insegura e pobre de espírito nos tornamos para temermos tanto aqueles diferentes de nós? Sempre que vejo alguém desqualificando um outro por suas ideias e suas crenças, fico pensando: será que esta pessoa tem uma vida tão sensacional que todas as outras precisam ser esculhambadas? Desconfio que seja exatamente o contrário. Não custa nada olhar para dentro e apalpar um pouco a matéria dos nossos dias antes de sair por aí cimentando regras para a vida de todos.
Eliane Brum, em A boneca inflável de cada um.
Com o coração
sábado, 10 de julho de 2010 13:48 0 Comentários
Hoje eu não quero conversas vestidas de uniforme. Diálogos impecavelmente arrumados que não deixam o coração à mostra. As palavras podem sair de casa sem maquiagem. Podem surgir com os cabelos desalinhados, livres de roupas que as apertem, como se tivessem acabado de acordar. Dispensa-se tons acadêmicos, defesas de tese, regras para impressionar o interlocutor. O único requinte deve ser o sentimento. É desnecessário tentar entender qualquer coisa. Tentar solucionar qualquer problema. Buscar salvamento para o quer que seja.

Hoje eu não quero falar sobre o quanto o mundo está doente. Sobre como está difícil a gente viver. Sobre as milhares de coisas que causam câncer. Sobre as previsões de catástrofes que vão dizimar a humanidade. Sobre o quanto o ser humano pode ser também perverso, corrupto, tirano e outras feiúras. Sobre os detalhes das ações violentas noticiadas nos jornais. Não quero o blablablá encharcado de negatividade que grande parte das vezes não faz outra coisa além de nos encher de mais medo. Não quero falar sobre a hipocrisia que prevalece, sob vários disfarces, em tantos lugares. Hoje, não. Hoje, não dá. Não me interessam o disse-que-disse, os julgamentos, a investigação psicológica da vida alheia, os achismos sobre as motivações que fazem as pessoas agirem assim ou assado, o dedo na ferida.

Hoje eu não quero aquelas conversas contraídas pelo receio de não se ter assunto. A aflição de não se saber o que fazer se ele, de repente, acabar. O esforço de se falar qualquer coisa para que a nossa quietude não seja interpretada como indiferença. Hoje eu não quero aquelas conversas que muitas vezes acontecem somente para preenchermos o tempo. Para tentarmos calar a boca do silêncio. Para fugirmos da ameaça de entrar em contato com um monte de coisas que o nosso coração tem pra dizer. Além do necessário, hoje não quero falar só por falar nem ouvir só por ouvir. Que a fala e a escuta possam ser um encontro. Um passeio que se faz junto. Um tempo em que uma vida se mostra para a outra, com total relaxamento, sem se preocupar se aquilo que é mostrado agrada ou não. Se aumenta ou diminui os índices de audiência.

Hoje, se quiser, se puder, se souber, me fala de você. Da essência vestida com essa roupa de gente com a qual você se apresenta. Fala dos seus amores, tanto faz se estão perto do seu corpo ou somente do seu coração. Fala sobre as coisas que costumam fazer você sintonizar a frequência do seu riso mais gostoso. Fala sobre os sonhos que mantêm o frescor, por mais antigos que sejam. Fala a partir daquilo em você que não desaprendeu o caminho das delícias. Do pedaço de doçura que não foi maculado. Da porção amorosa que saiu ilesa à própria indelicadeza e à alheia. A partir daquilo em você que continuou a acreditar na ternura, a se encantar e a se desprevenir, apesar de tantos apesares. Conta sobre as receitas que lhe dão água na boca. Sobre o que gosta de fazer para se divertir. Conta se você reza antes de adormecer.

Hoje, me fala de você. Dos momentos em que a vida lhe doeu tanto que você achou que não iria aguentar. Fala das músicas que compõem a sua trilha sonora. Dos poemas que você poderia ter escrito, de tanto que traduzem a sua alma. Senta perto de mim e mesmo que estejamos rodeados por buzinas, gente apressada, perigos iminentes, faz de conta que a gente está conversando no quintal de casa, descascando uma laranja, os pés descalços, sem nenhum compromisso chato à nossa espera. A gente já brincou tanto de faz-de-conta quando era criança, onde foi que a gente esqueceu como se chega a esse lugar de inocência? Fala da lua que você admirou outra noite dessas, no céu. Da borboleta que lhe chamou à atenção por tanta beleza, abraçada a alguma flor, como se existisse apenas aquele abraço. Diz se quando você acorda ainda ouve passarinhos, mesmo que não possa identificar de onde vem o canto. Diz se a sua mãe cantava para fazer você dormir.

Senta perto e me conta o que você sentiu quando viu o mar pela primeira vez e o que sente quando olha pra ele, tantas vezes depois. Se tinha jardim na casa da sua infância, me diz que flores riam por lá. Conta há quanto tempo não vê uma joaninha. Se tinha algum apelido na escola. Se consegue se imaginar bem velhinho. Fala da sua família, a de origem ou a que formou. Das pessoas que não têm o seu sobrenome, mas são familiares pra sua alma. Fala de quem passou pela sua vida e nem sabe o quanto foi importante. Daqueles que sabem e você nem consegue dizer o tamanho que têm de verdade. Fala daquele animal de estimação que deitava junto aos seus pés, solidário, quando você estava triste. Diz o que vai ser bacana encontrar quando, bem lá na frente, olhar para o caminho que fez no mundo, em retrospectiva.

Podemos falar abobrinhas, desde que sejam temperadas com riso, esse tempero que faz tanto bem. A gente pode rir dos tombos que você levou na rua e daqueles que levou na vida, dos quais a gente somente consegue rir muito depois, quando consegue. A gente pode rir das suas maluquices românticas. Das maiores encrencas que já arrumou. Das ciladas que armaram para você e, antes de entender que eram ciladas, chegou até a agradecer por elas. De quando descobriu como são feitos os bebês. A gente pode rir dos cárceres onde se prendeu e levou um tempo imenso pra descobrir que as chaves estavam com você o tempo todo. Das vezes em que se sentiu completamente nu diante de um Maracanã, tamanha vergonha, como se todos os olhos do mundo estivessem voltados na sua direção. Das mentiras que contou e acreditaram com facilidade. Das verdades que disse e ninguém levou a sério.

Não precisa ter pauta, seguir roteiro, deixa a conversa acontecer de improviso, uma lembrança puxando a outra pela mão, mas conta de você e deixa eu lhe contar de mim. Dessas coisas. De outras parecidas. Ouve também com os olhos. Escuta o que eu digo quando nem digo nada: a boca é o que menos fala no corpo. Não antecipe as minhas palavras. Não se impaciente com o meu tempo de dizer. Não me pergunte coisas que vão fazer a minha razão se arrumar toda para responder. Uma conversa sem vaidade, ninguém quer saber qual história é a mais feliz ou a mais desditosa.
Hoje eu quero conversar com um amigo pra falar também sobre as coisas bacanas da vida. As miudezas dela. A grandeza dela. A roda-gigante que ela é, mesmo quando a gente vive como se estivesse convencido de que ela é trem-fantasma o tempo inteiro. Um amigo pra falar de coisas sensíveis. Do quanto o ser humano pode ser também bondoso, honesto, afetuoso, divertido e outras belezas. Dos lugares onde nossos olhos já pousaram e daqueles onde pousam agora. Um amigo para conversar horas adentro, com leveza, de coisas muito simples, como a gente já fez mais amiúde e parece ter desaprendido como faz. Um amigo para se conversar com o coração.

E se não quisermos, não pudermos, não soubermos, com palavras, nos dizer um pouco um para o outro, senta ao meu lado assim mesmo. Deixa os nossos olhos se encontrarem vez ou outra até nascer aquele sorriso bom que acontece quando a vida da gente se sente olhada com amor. Senta apenas ao meu lado e deixa o meu silêncio conversar com o seu. Às vezes, a gente nem precisa mesmo de palavras.
A vez das ciumentas
quinta-feira, 1 de julho de 2010 10:37 0 Comentários
O problema de um relacionamento nunca é o ciúme, é a indiferença. O amor é justamente misturar defeitos e qualidades e se humanizar violentamente, então eu faço a defesa do ciúme. Se a gente tem a capacidade de legitimá-lo, de aceitá-lo, ele acaba ajudando no relacionamento. [...]

Se uma mulher está sendo barraqueira, obsessiva, ela tentou avisar do ciúme antes, mas não foi correspondida. [...]

[...] a gente só pensa nos efeitos colaterais, mas esquecemos deste lado generoso dela, do lado cúmplice, de que ela é transparente, sincera, se ela não gostar de algo ela vai dizer, se gosta também, ela não vai se guardar para depois. Ela é pontual amorosamente, está sempre pensando numa maneira de surpreender, na rotina ela acaba sendo uma mulher mais próxima, também. Ela é a melhor companheira que existe, porque não está se disfarçando e entende que o amor é esta explosão. Só que as pessoas não confessam que querem isso.

[...] há um individualismo que de certa forma não faz a gente querer um amor, mas uma amizade. Não queremos nos desesperar por alguém, queremos mesmo é evitar o sentimento extremado. Se você pode sair e voltar a qualquer hora, se você tem o controle do que você pede num relacionamento, isso é tudo menos amor. Os relacionamentos hoje são mais acordos do que entregas, mas na verdade queremos alguém que possa nos reconhecer.

Fabrício Carpinejar, trechos de entrevista para o iG.
O texto completo, aqui.

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Obrigada, Carpinejar. Agora não me sinto tão deslocada no mundo.


Desapego
quarta-feira, 30 de junho de 2010 07:03 0 Comentários
Tem dor que vira companhia. Olhando de perto, faz tempo que deixou de doer, só tem fama, mas a gente não solta. Quem sabe, pelo receio de não saber o que fazer com o espaço, às vezes grande, que ficará desocupado se ela sair de cena. Vazio é também terreno fértil para novos florescimentos, mas costuma causar um medo inacreditável.

Quando, finalmente, criou coragem e deixou de dar casa, comida e roupa lavada para a tal dor, ela desapareceu.
Fora dos eixos
segunda-feira, 28 de junho de 2010 13:31 0 Comentários
Eu nasci em época errada. Deveria ter nascido quando os homens cortejavam as mulheres e se desdobravam para conquistá-las. Hoje, somos nós que temos de demonstrar interesse, sair à caça, chegar junto, nos declarar. Logo mais, vão querer que façamos pedidos de casamento e peguemos um homem no colo na noite de núpcias. Sinto muito, mas a mulher aqui sou eu.
Aquela que não tem nome
Acompanho o Fabrício Carpinejar pelo Twitter e hoje li uma resposta no seu Consultório Poético que me emocionou imensamente. Copiei apenas os trechos que mais me tocaram.

Uma moça pergunta:
Mas ele não pode me entregar o que eu desejava. Aquela palavra com C que todos os homens temem. Mas não era véu ou grinalda que eu queria, não era bolo, não queria uma lista de convidados, uma casa, contas conjuntas. Eu queria cumplicidade [...] eu não tenho um título, não sou namorada, não sou amante, não sou amada, não sei o que sou para ele [...] O amor esquece de acontecer para mim. Como faz para que ele aconteça? Essa é a minha pergunta real.

O Carpinejar responde:
Confessa que não tem título nenhum: “não sou namorada, não sou amante e não sou amada, não sei o que sou para ele”. Mas age como namorada, amante e amada, obedecendo a uma representação bem definida. Ele foi avisado do compromisso e de sua necessidade? Ou está esperando que ele transcreva seu pensamento e siga o script? De repente, o sujeito não alcança a gravidade de sua percepção. Nem deve entender o que anseia. [...] Está ferida pelo amor público, por aquilo que ele não demonstrou aos outros – não tanto pela saudade da história que construíram. Não descobriu apenas que é um homem comum, o baque é que se viu tão comum quanto ele. Não a valorizou e glorificou como gostaria, como sonhou desde a infância. Sua cicatriz vem de um romantismo descumprido, de uma idealização arruinada. Ele não é o melhor para você, é o necessário no momento para desafiar suas próprias limitações e condicionamentos. Tentaria novamente. Opção cômoda é sofrer e aceitar, resignada, a separação onde não começou a união. Insistiria uma vez, duas vezes, até cansar de projetar o passado na tela de seu quarto.

A pergunta, na verdade, referia-se à traição do rapaz com sua amiga. Mas pelos meus olhos, o que me tocou foi esse trecho. Já passei pela mesma experiência dessa moça, aquela que não tem nome numa relação também sem definição. Na terapia, chorando eu perguntei: “Ele namorou com outras, por que não comigo?” e ouvi a resposta mais triste: “Talvez você não seja o pesinho de flor dele”. E o que a gente mais quer, quando ama, é ser a única flor na vida dessa pessoa. Ler a resposta do Carpinejar foi relembrar essa angústia de não ter identidade para aquele que mais importa. Pela primeira vez alguém entendeu isso com tamanha sensibilidade. E chorei porque sei como ninguém o que significa essa dor.


Para ler o texto completo, aqui.

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